Fragmentos de um Mundo Perdido: Como a Arqueologia Está Reescrevendo a História do Reino de Judá
Escavações no sítio arqueológico da Cidade de Davi, em Jerusalém, têm desenterrado, de forma sistemática, uma coleção sem precedentes de pequenos selos de argila (bullae) e impressões em jarros que mencionam figuras da realeza judaíta. Estas descobertas, datadas dos séculos VIII e VII a.C., estão fornecendo evidências tangíveis da sofisticada burocracia do Reino de Judá, confirmando nomes de personagens bíblicos e, ao mesmo tempo, desafiando interpretações consolidadas sobre a datação de eventos-chave narrados no Antigo Testamento.
Descobertas Revolucionárias na Cidade de Davi
A Autoridade de Antiguidades de Israel (IAA) e equipes acadêmicas da Universidade de Tel Aviv anunciaram a análise de um lote de mais de 150 bullae recuperadas de um edifício administrativo que foi destruído durante a conquista babilônica de Jerusalém, em 586 a.C. Entre os artefatos, encontram-se selos com inscrições como "Pertencente a Natã-Meleque, Servo do Rei" – um oficial mencionado em 2 Reis 23:11 – e "Pertencente a Yesha‘yahu [Isaías] filho de Natan", que alimenta debates sobre uma possível conexão com o profeta bíblico Isaías.
O que são Bullae?
As bullae eram pequenos pedaços de argila macia usados para selar documentos de papiro. Ao serem pressionadas contra o papiro amarrado com um barbante, elas carimbavam a impressão de um selo de pedra ou metal, funcionando como uma assinatura oficial e garantia de autenticidade. O incêndio que consumiu o edifício durante a destruição babilônica, ironicamente, cozinhou e preservou essas argilas, que de outra forma teriam se desintegrado com o tempo.
Confirmação de Personagens Bíblicos
A descoberta mais impactante é a do selo de "Natã-Meleque, Servo do Rei". A Bíblia o descreve como um oficial da corte do rei Josias, envolvido na reforma religiosa que purgou o culto a divindades estrangeiras. Encontrar seu nome impresso em argila é uma das raras confirmações diretas da existência de um personagem secundário, porém específico, da narrativa bíblica.
Outra bulla que gerou grande interesse é a que traz o nome de "Isaías, filho de Natan". A proximidade física desta peça com a de um selo pertencente ao Rei Ezequias, descoberto na mesma camada arqueológica, levanta a possibilidade de ser o profeta Isaías, conselheiro principal de Ezequias, conforme descrito no Livro de Isaías, capítulos 36 a 39. No entanto, os arqueólogos são cautelosos, pois "Isaías" era um nome comum na época, e a ausência do título "profeta" na inscrição impede uma identificação categórica.
O Reino de Judá no Século VII a.C.
O período em questão, conhecido como Idade do Ferro II, representa o auge do Reino de Judá. Após a destruição do Reino de Israel (Reino do Norte) pela Assíria em 722 a.C., Judá e sua capital, Jerusalém, experimentaram um crescimento populacional, econômico e administrativo significativo.
As bullae descobertas são artefatos típicos deste estado burocrático em desenvolvimento. Elas atestam um sistema de cobrança de impostos, registro de transações e emissão de decretos reais. A destruição camada por camada do edifício onde foram encontradas serve como um "instantâneo" arqueológico do exato momento do cerco e incêndio de Jerusalém pelo imperador Nabucodonosor, um evento traumático que pôs fim à monarquia davídica e deu início ao Exílio Babilônico.
Opinião dos Especialistas
Especialistas enfatizam o valor das descobertas. A Dra. Eilat Mazar, arqueóloga que liderou algumas das escavações chave na Cidade de Davi, afirma: "Cada uma dessas bullae é como uma pequena janela para o mundo real da Bíblia. Elas nos dão nomes e cargos de pessoas que viveram, trabalharam e governaram em Jerusalém. O caso de Natã-Meleque é particularmente notável, pois transforma um nome em um personagem histórico de carne e osso."
Por outro lado, o Prof. Israel Finkelstein, da Universidade de Tel Aviv, conhecido por sua abordagem mais crítica à cronologia bíblica, vê nessas descobertas uma confirmação de aspectos, mas também um convite à revisão. "As bullae comprovam a existência de uma administração complexa em Jerusalém no final do século VII a.C. No entanto, a ausência de evidências arqueológicas semelhantes para períodos anteriores, como o dos reinados de Davi e Salomão no século X a.C., reforça a tese de que Judá só se tornou um estado plenamente desenvolvido mais tardiamente. A história escrita da monarquia unificada pode ser uma projeção para o passado de uma realidade posterior."
Conclusão: Reescrevendo a História
As bullae de Jerusalém são mais do que meros vestígios de um incêndio antigo; são testemunhas mudas de um reino em seu apogeu e em sua queda. Elas fortalecem o núcleo histórico do Reino de Judá no século VII a.C., fornecendo um pano de fundo material tangível para os relatos bíblicos.
No entanto, longe de simplesmente "provar a Bíblia", essas descobertas alimentam um diálogo científico mais complexo e matizado. Elas desafiam os estudiosos a refinar suas cronologias, a distinguir entre história e narrativa teológica e a compreender que, na interface entre a pá do arqueólogo e o texto sagrado, a história do antigo Israel continua a ser desenterrada, um fragmento de cada vez.